Ela me pede para prestar atenção na sombra do muro à nossa esquerda, indicando que isso me ajudará na travessia. Mesmo sem enxergar nenhuma sombra, minha namorada explica que se refere aos sons, ao deslizar e bater das bengalas no chão, criando uma espécie de sombra auditiva. É a ecolocalização, uma habilidade que se desenvolve com paciência e treino, e não exige poderes especiais, apenas atenção aos detalhes.
Para mim, com pouquíssima visão, esses detalhes sutis são perceptíveis. Mesmo não podendo reconhecer um amigo, ver uma foto ou admirar uma flor, meu cérebro interpreta a luz, as sombras e os recortes de imagens que meu olhar captura. A bengala se torna uma extensão do meu tato, protegendo-me de obstáculos e orientando-me pelo caminho.
Refletindo sobre a troca gradual de percepções, fecho os olhos e tento imaginar como será a vida sem a visão daqui a alguns anos. Ao me concentrar nos sons ao redor, percebo a mudança na forma como o mundo se apresenta para mim. Os sons da televisão, do micro-ondas e das diferentes texturas e cores se tornam mais nítidos, revelando um universo sensorial mais complexo do que imaginava.
Mesmo com a experiência enriquecedora, não pretendo sair de casa vendado amanhã. A abertura para novas percepções é um processo gradativo, um estímulo constante para explorar o mundo com curiosidade e entusiasmo renovados. A perda iminente da visão se torna, assim, um caminho para o aprimoramento dos outros sentidos, um convite para uma jornada de autoconhecimento e superação.