Mas eis que, de repente, a minha normalidade sofre um curto-circuito, um problema maior instantaneamente absorveu todos os outros. Aconteceu o chacoalhão mais temido: o que mexe com a vida de quem se ama. Só uma coisa me importa agora: o problema. A vida mudou em poucos minutos, um vaso sanguíneo do tamanho insignificante de 1mm teve o péssimo gosto de se romper dentro do cérebro da mulher mais importante da minha vida. Inundou a região afetada de sangue e a família de dúvidas e incertezas. Alguns movimentos paralisados pelo AVC fizeram paralisar também a nossa vida, à espera de novas sinapses.
Vivemos, minha mãe e eu, um mundo paralelo dentro de um hospital volátil. Onde não tem dia ou noite, onde a identidade da pessoa é a sua doença e seus atributos variam de acordo com as imagens de exames. O cheiro aqui é de remédio, medo e esperança. O que é dado como certo não faz parte desse mundo, onde cada passo é uma conquista, uma comemoração. Comer, balbuciar, se movimentar, tudo isso que minha mãe luta para conseguir, me faz celebrar a vida. Tudo parece novo, o ABC do AVC, como se fosse a primeira vez, como de fato sempre é.
Nesse mundo em que estou compulsoriamente confinada, habita a verdade crua e nua. É nele que se revela a nossa fragilidade, que nos coloca cara a cara com a finitude humana e prova que toda a “naturalidade” da vida é um milagre. “Só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem. A segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre”, teria dito Albert Einstein.
Para que a vida flua, entretanto, tudo tem que parecer natural. Não suportaríamos viver na assepsia do mundo paralelo, não nos queremos tão nus. A mentira não tem limites, mas a verdade tem: o humano não foi feito para tanta verdade. Se tivéssemos consciência permanentemente de todos os perigos que corremos, viveríamos em função do fim, no abismo da nossa existência. As emoções, sábias que são, fazem a vida parecer segura e eterna — ainda que o contrário seja a nossa única certeza. Sêneca, em seu belíssimo ensaio “Sobre a Brevidade da Vida”, define bem a ideia ao escrever que desperdiçamos o tempo como se estivéssemos bebendo de um “suprimento completo e abundante”.
Nunca saberemos quanto suprimento nos resta. É isso que faz a vida tão irresistível. Da mesma forma que o esquecimento alivia a dor —mesmo que apague uma verdade—, o mistério da vida é o que nos joga para dentro dela. O revelado não nos interessa, porque já disse coisa demais.
Dentro dos acontecimentos extraordinários (acidentes ou a vida?), estão embutidas todas as coisas que consideramos ordinárias. Em frações de segundos, a rotina pode deixar de existir e aspas são colocadas na palavra normalidade. Nesses momentos, pendemos entre a nossa importância e a nossa insignificância; e lembramos o óbvio: não somos nós que controlamos a vida, é ela que nos comanda.
Perder a rotina nos faz perceber o quanto ela é abençoada. Acordar com o barulho do vizinho, e não com os bips de medidores de sinais vitais, é música para os ouvidos; se preocupar com a pressão do trabalho, e não com a pressão arterial, é um privilégio. Tenho uma vida toda para resolver as notas baixas, o requeijão duro na geladeira, a fascite na sola do pé. Hoje a vida se faz mais urgente.
Se hoje você já reclamou de mais de um problema, agradeça! É sinal de que está tudo bem.