A incerteza reina: quem está confuso, as balas ou nós?

A linguagem é perigosa. Desde que uma criança foi morta a tiros em algum beco de uma metrópole brasileira e decidimos categorizar sua morte como “bala perdida”, perdemos parte da nossa humanidade.

É difícil determinar quando exatamente surgiu essa expressão. “Bala perdida” é uma expressão antiga e provavelmente tão antiga quanto as armas de fogo. Projéteis sempre encontraram uma maneira de sair do alvo pretendido e encontrar um alvo acidentalmente.

No entanto, é mais recente a probabilidade de que uma dessas trajetórias, implacáveis como a indiferença dos deuses, encontre um menino jogando bola na rua ou uma menina se apoiando na janela e sussurra em seu ouvido: acabou.

Isso não significa que algo semelhante nunca tenha acontecido antes das nossas cidades crescerem e se tornarem verdadeiros caos mais de meio século atrás. Podia acontecer, mas era extremamente raro antes dessa guerra interminável entre polícia e bandidos, onde a fronteira entre os dois lados muitas vezes se confundia – com um monte de gente no meio.

Será que essa proliferação de “balas perdidas” é resultado da falta de treinamento, perícia e profissionalismo? Mesmo que todos os atiradores fossem medalhistas olímpicos, ainda assim haveria balas perdidas. E isso sem mencionar as “balas perdidas” que são, na verdade, eufemismos para chacinas, disparadas pelas costas ou à queima-roupa.

Curiosamente, essas supostas balas perdidas parecem preferir crianças. Será porque elas são curiosas e insistem em se intrometer em assuntos de adultos, onde não foram chamadas? Ou será que pessoas de todas as idades morrem dessa forma, mas só damos importância ao banal quando atinge o futuro?

A expressão “bala perdida” nos desumaniza. Primeiro, porque essas balas não estão perdidas. Elas têm um alvo claro. São feitas para matar e, quando erram o alvo e se alojam em uma parede ou tronco de árvore aleatória, ainda assim não as consideramos perdidas. Elas abriram um buraco, não é verdade?

As balas têm o poder de criar buracos, até mais do que de matar. Abrir buracos é ótimo quando o objetivo é matar, mas também serve para outros propósitos. Digamos que alguém queira arrombar uma porta trancada; balas também podem funcionar para isso.

E é claro que pode acontecer de alguém querer arrombar a porta para, em seguida, matar a pessoa que está do outro lado. Nada impede, desde que haja balas suficientes. Derrubar portas requer muitas balas, por isso tantos especialistas recomendam o uso de pistolas automáticas.

A bala que chamamos de perdida está exatamente onde deveria estar, voando como foi projetada para fazer, deixando rastros de destruição. Quem está perdido somos nós. E, claro, a pessoa que disparou a bala também está perdida. Dificilmente alguém está caminhando pela rua e, por acidente, seu revólver começa a disparar balas pelo mundo. É mais comum que a pessoa aperte o gatilho na direção de algo ou alguém, correndo o risco de atingir um inocente.

Mas no final, somos todos perdidos durante esses tiroteios. Permitimos que a história de tantas vidas destruídas de forma insensata seja diminuída por uma expressão covarde e imoral.

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