De certa forma, os “democratas de Trump” são o oposto dos democratas de Reagan: aqueles que votaram em Reagan foram contra os seus próprios interesses econômicos em nome da ideologia – em parte o tema do livro publicado em 2004 por Thomas Frank, What’s the Matter with Kansas?. Os seguidores de Trump, pelo contrário, foram empurrados para a direita em função dos seus interesses econômicos – como resultado da perda de bons empregos (aqueles com assistência médica, aposentadorias, férias pagas) ou sentindo que estavam sob ameaça.
Em um comício eleitoral em 2020, Trump disse: “Queremos garantir que mais produtos sejam orgulhosamente estampados com a frase – essa bela frase – made in the USA”. Sob Biden, os democratas, evidentemente alarmados com as eleições de 2016, adotaram esse bordão. Os discursos de Biden enfatizam o regresso dos empregos à América: “Onde está escrito que a América não pode voltar a ser a capital mundial da manufatura?”.
Isso ajuda a perceber a semelhança política entre os dois presidentes, por mais que se apresentem como diametralmente opostos. É justo presumir que as diferentes classes dominantes de um país têm, às vezes, interesses divergentes, ou mesmo opostos. Mas se o país for o império que domina o mundo, pelo menos em um ponto as classes dirigentes estarão de acordo: não querem ver a base do seu poder (isto é, o império-nação) enfraquecida. Aqueles que detêm o poder pretendem, no mínimo, mantê-lo, se não consolidá-lo ou expandi-lo. Assim, é razoável inferir que os interesses conflitantes entre as várias frações se manifestam em diferentes estratégias para governar o mundo, em diferentes concepções de império.
Nos Estados Unidos, estas diferentes concepções de império são reduzidas aos clichês do isolacionismo (ou unilateralismo) versus o multilateralismo intervencionista. É claro que este binômio é simples demais: na realidade, pode haver um intervencionismo unilateralista, entre outras combinações. Mas, na década de 1990, estes campos aglutinaram-se no partido da globalização (que busca governar o mundo através da liberalização do comércio e dos fluxos financeiros) e seus oponentes.
Ao longo da década de 1990 e dos anos 2000, o campo da globalização levou a melhor: a versão neoliberal da globalização ficou conhecida como o Consenso de Washington, que foi imposto à força na Sérvia, no Iraque, no Afeganistão, etc. Mas, no segundo mandato de Obama, as fissuras neste edifício estavam começando a aparecer. Os ‘think tanks’ (e não apenas os conservadores) começaram a preocupar-se com a ascensão da China e com as forças centrífugas que a globalização estava fomentando dentro do império, particularmente na Europa.
Os críticos da globalização começaram a salientar que a estratégia dos EUA, ao transformar a China na “fábrica do universo”, estava minando a si mesma. Esses críticos começaram também a chamar atenção para a forma como os efeitos da globalização estavam erodindo o consenso doméstico em torno da ideia de império.
Se na década de 1950 um operário dos Estados Unidos tinha um interesse legitimo no império (o seu salário e nível de vida eram os mais elevados do mundo), isso já não era verdade nos primeiros anos do novo milênio, quando a grande maioria das fábricas americanas havia sido transferida, primeiro para as maquiladoras mexicanas e depois para a Ásia. De certa forma, a globalização estava enfraquecendo o império em seu front interno.
Isto nos leva a outro aspecto da surpreendente continuidade entre as políticas de Trump e Biden. Os ‘bien-pensants’ de todo o mundo subestimaram seriamente Trump, ridicularizando-o pelo seu histrionismo e pelas suas mentiras. (Vale a pena recordar que, quando foi eleito, Reagan também foi ridicularizado – como um ator de filmes B, totalmente ignorante em matéria de política externa, um tolo que consultava cartomantes e estava convencido do fim iminente do mundo, destinado a sofrer impeachment em poucos meses. Vimos a continuação).
Mas, claro, o governo Trump não era só Trump. O seu gabinete incluía o CEO da Exxon, vários membros do banco mais poderoso do mundo (Goldman Sachs), uma bilionária do Meio-Oeste (Betsy DeVos), vários generais do Pentágono e, como segundo secretário de Estado, Mike Pompeo, o homem dos irmãos Koch. Magnatas do Vale do Silício participaram de reuniões na Casa Branca.
Em 2018, o Relatório Anual da Heritage Foundation, dando “adeus a algumas pessoas excelentes em 2017”, vangloriava-se de que “a administração Trump contratou mais de 70 dos nossos funcionários e antigos alunos.” No ano seguinte, o think tank gabou-se do fato do governo Trump ter “adotado 64% das sugestões políticas da Heritage”. Por trás da fanfarronice de Trump, em muitos aspectos o seu governo estava sendo teleguiado por esses think tanks financiados pela fração da classe dominante dos EUA que o fez ser eleito.
Durante a Guerra Fria, circulava um lugar-comum: que os republicanos eram conservadores na política interna, mas menos agressivos na política externa, enquanto os democratas eram progressistas em casa, mas mais belicistas no exterior (a Guerra do Vietnã foi travada sob Kennedy e Johnson; Nixon negociou a paz). Após a derrota da URSS, esta noção perdeu a sua validade: foram os presidentes republicanos, Bush Sr. e Bush Jr., que atacaram o Iraque, o Afeganistão e o Iraque novamente (embora Clinton tenha desencadeado o ataque à Sérvia e Obama tenha continuado a guerra do seu antecessor).
Isto nos leva à última, mas não menos significativa, área em que Biden repetiu as posições de Trump: na sua visão para o Oriente Médio, formalizada nos Acordos de Abraão de 2020, vista de forma mais evidente no apoio total e incondicional de Biden a Benjamin Netanyahu. Com a dupla Trump-Biden parece que estamos de volta à Guerra Fria: apesar de todas as suas proclamações bombásticas, Trump não começou nenhuma guerra. Com Biden, já estamos na segunda.