A escolha da zona oeste do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense para a realização do estudo se deu pelo alto registro de casos de ataques a terreiros de religião de matriz africana ocorridos nessas regiões nos últimos anos. Segundo a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), até 2019 havia registros de 200 casas de axé que foram alvo de agressões, incluindo a zona norte da capital fluminense. No entanto, é importante ressaltar que nem todos os casos são notificados, o que indica que o número real de ocorrências é ainda maior.
Entre as violações cometidas contra os terreiros estão ameaças, injúria racial, agressões físicas e até mesmo expulsões de seus próprios territórios determinadas por milícias ou organizações do tráfico. Um exemplo emblemático citado no estudo é a casa Xwe Nokun Ayono Avimaje, fundada há 10 anos em Nova Iguaçu, que já foi invadida e depredada três vezes. Além disso, há registros de violações à liberdade religiosa, como a imposição de horários restritos para a realização de rituais sagrados nos terreiros.
Levando em consideração essa realidade, o objetivo do estudo foi entender como as comunidades enxergam a política de segurança pública. Para isso, foram realizados grupos focais durante um mês, com a participação de 10 a 12 pessoas em cada um. Os encontros ocorreram em quatro casas de axé localizadas em Nova Iguaçu e na zona oeste do Rio de Janeiro, e contaram com moderadores para conduzir as discussões. Além dos grupos focais, lideranças dos terreiros preencheram um formulário online, que permitiu traçar um perfil dos terreiros, que têm, em média, 11 anos de fundação em seus territórios. A pesquisa também revelou que as lideranças desses espaços têm idades entre 35 e 55 anos e são compostas por homens e mulheres em proporção igual.
Um dos aspectos destacados pelos pesquisadores é o total descrédito das instituições policiais para garantir a proteção e a segurança dos terreiros e seus frequentadores. As denúncias de violações muitas vezes resultam em desapontamento, já que as autoridades tendem a minimizar os casos, classificando-os como brigas de vizinhos ou problemas de ordem pessoal, afastando o enquadramento das agressões como crime de ódio.
Diante disso, o pesquisador Patrick Melo, responsável pela coordenação do estudo, defende que as violações estão diretamente relacionadas com a omissão do Estado na defesa dos direitos humanos e dos povos de religião de matriz africana. Segundo ele, as comunidades se organizam de forma autônoma em rede para buscar o fortalecimento conjunto com outros terreiros, uma vez que não encontram a devida proteção do poder público.
Além disso, é importante ressaltar a crescente associação entre o crime e a fé cristã, um tema que tem chamado a atenção de especialistas em segurança pública. A pesquisadora Viviane Costa, em seu livro “Traficantes Evangélicos”, analisa o uso de símbolos e narrativas neopentecostais entre grupos criminosos. Já a socióloga Christina Vital Cunha, em sua obra “Oração de Traficante: Uma Etnografia”, também abordou esse fenômeno. Segundo Patrick Melo, a figura das comunidades de terreiro e das manifestações religiosas de matrizes africanas é colocada como inimiga do território, o que acaba resultando em agressões.
Diante desses dados, é crucial denunciar a ocorrência do racismo religioso nos episódios de violação aos terreiros de religião de matriz africana. Os pesquisadores também questionam a eficácia das denúncias feitas às delegacias de polícia, que nem sempre são investigadas, apuradas e julgadas. Nesse sentido, eles defendem o uso do conceito de racismo religioso em vez de intolerância religiosa, pois este último não abarca toda a dimensão do problema.
A pesquisa ajuda a evidenciar o descaso do Estado em relação à proteção das religiões de matriz africana e dos povos que as praticam. As comunidades religiosas buscam, por conta própria, formas de enfrentar essa realidade, mas é fundamental que o poder público assuma seu papel de garantir a segurança e a liberdade religiosa para todos. A violência contra terreiros de religião de matriz africana é uma violação dos direitos humanos e uma forma de racismo religioso que precisa ser enfrentada e combatida.