O aprisionamento dos sonhos: a triste realidade das crianças transformadas em ‘trabalhadoras como se da família fossem’

As palavras têm o poder de se tornarem livres quando são liberadas para o mundo. Elas adquirem novos significados quando são interpretadas por outras pessoas. É nesse momento mágico em que as palavras do autor se entrelaçam com a compreensão do intérprete, que o texto original ganha um novo contexto. Ele deixa de ser o mesmo e se transforma continuamente. Novas gerações de palavras nascem e renascem a cada interpretação, liberadas dos rótulos de propriedade.

Na semana passada, escrevi um texto reflexivo sobre o poder das palavras em palestras e o tratamento discriminatório imposto às pessoas que trabalham como empregados domésticos. Recebi diversos comentários que corroboravam com as palavras expressas no texto. Aprendi com esses comentários e os interpretei à minha maneira. Surgiram novas ideias e reflexões.

Um desses comentários me trouxe uma história comovente que reflete uma triste realidade brasileira, muitas vezes ignorada pela sociedade e pelo Estado. Trata-se da situação de crianças que são privadas de seus sonhos, de sua esperança no presente e de seu futuro. Essas crianças são transformadas em “trabalhadoras como se da família fossem”.

Essa história foi compartilhada por uma advogada que cresceu em uma família extremamente pobre nas proximidades de Brasília. Devido à grande pobreza, sua mãe concordou em deixar que sua filha mais velha, com apenas dez anos de idade, fosse viver com uma família de Brasília. A promessa era de estudo, convivência familiar e algum dinheiro para ajudar os que ficaram para trás. Pouco tempo depois, sua segunda irmã também foi convidada a morar em outra casa em Brasília, com promessas semelhantes.

Essa advogada revelou que não entendia o desaparecimento repentino de suas irmãs. Sentia saudades delas, principalmente quando sentia fome e precisava ser distraída. Diziam a ela que suas irmãs estavam trabalhando como babás, estudando nas horas vagas e que logo voltariam com presentes e muitas brincadeiras para compensar a ausência. No entanto, suas irmãs nunca voltaram, o que a fez suspeitar que haviam sido esquecidas pela nova vida feliz que estavam vivendo.

Chegou a vez dessa advogada também ser adotada por uma terceira família. Ela tinha apenas nove anos de idade quando deixou sua mãe para trás com a esperança de ter a mesma sorte de suas irmãs. Ela achava que Brasília era um lugar de muitas luzes, diferente da fazenda onde vivia. Ela não chorou na despedida, mas sua mãe sim. Ela levou consigo apenas uma boneca que pertencia à filha da dona da fazenda, sua garantia de companhia durante o desconhecido caminho que estava por vir.

Essa advogada teve um destino diferente. Encontrou um novo lar, novos irmãos e foi tratada como parte da família. Ela cuidava e era cuidada, era respeitada e amada. Estudou na mesma escola que seus irmãos e se formou em Direito. Ao reencontrar suas irmãs, descobriu que elas estavam trabalhando como empregadas domésticas, sem terem tido a oportunidade de estudar. Elas eram “trabalhadoras como se da família fossem”. A advogada se sentiu culpada pelos infortúnios que suas irmãs enfrentaram, mas também entendeu o sacrifício que sua mãe fez ao deixá-las irem embora. Ela as perdoou e se sentiu perdoada.

No entanto, ela sabe que o perdão pessoal não pode ser confundido com o perdão das instituições estatais. Ela reconhece a omissão da sociedade no combate ao trabalho infantil e ao sequestro da infância. Ela entende que é necessário urgentemente coibir essa prática de tratar crianças como objetos de caridade, negando-lhes seus sonhos, projetos de vida e dignidade. A vida não pode ser um jogo de loteria em que o destino determina o caminho trilhado pelas crianças mais desfavorecidas. Como advogada, ela luta para eliminar a categoria profissional de “trabalhadoras como se da família fossem” e acabar com a escravidão moderna.

Essa história é apenas uma entre tantas outras que ocorrem diariamente no Brasil. É um retrato da desigualdade histórica do país, que priva crianças de seu direito à infância e ao futuro. É preciso que a sociedade e o Estado se unam nessa luta para garantir que todas as crianças brasileiras tenham a chance de crescer sem serem exploradas e tratadas como objetos descartáveis.

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