A negligência continua sem resposta, duas décadas após a trágica perda de Sérgio Vieira de Mello.

Há 20 anos, o governo Bush iniciou uma invasão no Iraque com o objetivo de derrubar Saddam Hussein. Como retaliação, um terrorista suicida bombardeou o Escritório das Nações Unidas em Bagdá. Como testemunha dessa tragédia, presenciei de perto a devastação causada pelo ataque. Os restos mortais mutilados dos meus colegas alinhavam-se do lado de fora das ruínas do nosso escritório. A bandeira azul, antes orgulhosamente erguida, estava agora reduzida a um pedaço de pano esfarrapado. Os detalhes sangrentos marcados na parede branca eram uma lembrança vívida da explosão que destruiu meu escritório e tirou a vida do meu marido, que estava preso debaixo de uma laje de concreto. Essa tragédia nos leva a refletir sobre o que as vítimas ensinaram à ONU e aos seus membros.

Passadas duas décadas, estamos testemunhando milhões de gastos em comemorações superficiais no Dia Mundial Humanitário da ONU, em meio a um conflito em curso entre Ucrânia e Rússia. Essa situação nos faz questionar se todas essas perdas foram em vão e nos faz refletir sobre a necessidade de uma avaliação mais profunda do sistema internacional baseado em regras. É evidente que chegou a hora de discutir a assimetria na aplicação dessas regras, especialmente no Ocidente de 2023, que demanda uma defesa mais incisiva da Ucrânia.

Como diplomata da ONU, é importante destacar que meu marido, Sérgio Vieira de Mello, não era apenas o Chefe da ONU no Iraque, mas também o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos. Ele conquistou essa posição devido à sua reputação e alto desempenho, tendo estado presente nos maiores conflitos do século XX. Sua morte trágica revela a necessidade de transformar essa tragédia em aprendizado, para que erros semelhantes não se repitam.

É preocupante constatar que, mesmo após duas décadas, negligência e morosidade ainda permeiam as ações da ONU. O sistema internacional baseado em regras, que foi projetado para promover a conformidade com as normas internacionais, muitas vezes é moldado e reinterpretado para atender a interesses específicos. Essa falta de confiança no sistema é evidenciada pelo fato de que países tradicionais têm privilégios, enquanto outros são deixados de lado.

A falta de sanções contra os Estados Unidos após a Guerra do Iraque é um exemplo claro dessa parcialidade. Além disso, arranjos que permitem que alguns países escolham os líderes de instituições internacionais também reforçam a persistente parcialidade pró-Ocidente. Essas dinâmicas internas não ocorrem apenas no nível dos Estados, mas também no nível individual. O caso de Sérgio Vieira de Mello ilustra como até mesmo um princípio básico, como o respeito à nacionalidade, pode ser alterado para atender aos interesses de certos atores.

Essas inconsistências na aplicação das regras do sistema internacional minam a credibilidade da ONU e de outras instituições semelhantes. Para que essas instituições possam agir efetivamente como mediadoras para a paz, é crucial que as regras sejam aplicadas de maneira justa e igualitária. É inconcebível que existam assimetrias de poder e que os fracos sejam deixados à mercê dos fortes. Se a ONU e outras organizações internacionais desejam eliminar essas desconfianças arraigadas, é essencial que as regras sejam seguidas de maneira consistente e imparcial.

Em um momento em que o chamado para unir o mundo é feito pelo Ocidente, é compreensível que o Sul Global o considere hipócrita. É hora de questionar a mentalidade colonizadora e arcaica que continua a ditar as regras. Se queremos um mundo mais justo e equitativo, as regras devem ser aplicadas a todos, sem exceção. As lições aprendidas com o ataque em Bagdá há 20 anos devem servir como um lembrete de que os princípios, normas e regras existem para proteger os fracos dos abusos dos fortes. Somente quando esses princípios forem seguidos de maneira consistente poderemos alcançar a paz tão desejada.

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